quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

OLHANDO O MEU PAÍS

O MEU GALO

O Conto que se segue é dedicado à CASADORAU, em especial à Ná e seu Esposo, Maria José Areal, Ana Martins e a todos os meus amigos.

Os únicos animais que se criavam em minha casa eram as galinhas. Nunca contei mais que quatro. Quando estas acabavam, decorriam grandes períodos de tempo para que outras ocupassem o galinheiro. A razão era muito simples: Quem tinha galinhas, tinha que lhe dar de comer, mas para dar de comer às galinhas era preciso ter comida própria. Para se ter comida para as galinhas era necessário a existência de terras de cultivo.

Como terras de cultivo para criação de animais em minha casa não existiam, não era possível apostar nas galinhas!... Nas galinhas, nos coelhos, nos porcos, nas vacas, nada, mesmo nada. Nós sabemos que as galinhas comem tudo o que encontram, mas isso não chega. É necessário dar-lhes de comer periodicamente.
Por vezes, quando a minha mãe trabalhava aqui ou ali, sempre trazia qualquer coisa para elas mas, a maior parte das vezes, as nossas galinhas não tinham direito a Jantar. Comiam o que encontravam no chão e ‘viva-o-velho’.

Assim, passavam mais tempo no cruzeiro do que na nossa quinteira. Nunca soube que raio de galinhas a minha mãe arranjava que não punham ovos. Por isso, no nosso galinheiro não havia ninho destinado à postura. O nosso galinheiro estava quase sempre vazio. Certo dia a minha mãe trouxe um galo muito jovem mas..., já era galo com crista e tudo.Era um galo lindo com uma crista tão encarnadinha que, mais parecia que tinha sido pintada.

Nos primeiros dias arranjaram-se uns talos de couve-galega (único produto cultivado na nossa ”quinta”) que, depois de muito migadinhos, ele engolia aquilo com grande sofreguidão sem saber o que era (penso eu). O galo era muito bonito e eu gostava muito dele, mas o gajo não me dava confiança. Quando tentava pôr-lhe as mãos em cima, lá vinha a picadela do galo.Mesmo assim, eu gostava muito dele.

Quando ia à Tiana, sempre trazia uma espiga de milho para o meu galo. Quando ia à Fonte nunca voltava de mãos vazias. Era um galo com sorte. Quando ele via uma galinha, era vê-lo a arrastar a asa para na oportunidade abusar dela. Ele mostrava aquele peito como se fosse o maior. 

O tempo foi passando, o galo foi crescendo e começou a ensaiar os primeiros acordes da sua cantilena. Como dormia sozinho, logo às cinco da manhã lá estava ele, mais parecendo uma “cana rachada”, a tentar ser ouvido pelos galos de outros galinheiros. A pouco e pouco, o galo foi afinando a voz e, acordava toda a gente.

Certo dia já de madrugada, ouvi minha mãe levantar-se da cama e, dirigindo-se ao galinheiro, pegou no galo e atirou com ele para dentro do velho cabano. Não lhe ficou de emenda porque, a partir daquele dia, o Galo até parecia que tinha relógio. À hora certa lá estava ele a acordar os outros. Depois era ver quem cantava mais alto. A festa começava cedo. Quando o galo se passeava pelo Cruzeiro, todo a gente o gabava. Ele até parecia que entendia os elogios, por isso, engalanava-se todo. Quando via as galinhas da Tia Covas lá na quinteira, dava uma corrida e era tudo a eito. Algumas, quando o viam a correr escondiam-se dele mas, depois de cumprida a obrigação com as que não se esconderam, lá ia saber delas.

Certo dia, já farto de esperar pelas meninas da Tia Covas que ainda não tinham recebido ordem de soltura, entrou na quinteira da Tiana Maceiras e, sem respeito nenhum pelos galos daquela capoeira, toca a exibir-se com grande provocação arrastando a asa a todas as galinhas. Depois de abusar de duas ou três, apareceram os galos da Tiana que lhe fizeram a vida negra. Enquanto as galinhas apoiavam os galos da Tiana cacarejando tanto que punham o meu galo surdo, eles abriam as asas e bicos dando grandes saltos uns contra os outros aproveitando o voo para aplicar a sua bicada na cabeça do adversário. Como o meu galo era mais forte, não se rendeu. Ele mantinha a luta renhida mas controlada. Um dos lingrinhas da Tiana já tinha levado uma boa bicada na ‘tola’ de tal maneira que já se via o sangue envolvendo as penas do pescoço.

Intrigada com todo aquele reboliço, a Tiana Maceiras veio à quinteira ver o que se estava a passava.
Depois, vendo que o meu galo era o maior, pegou num pau e correu com ele. Corrido à paulada mas vitorioso, quando chegou ao Largo do Cruzeiro passeou-se como que de um vencedor se tratasse, e lá foi para casa. Como foi um dia de muito trabalho, foi compensado com um punhado de milho que eu tinha trazido do caniço da Tia Viúva. De papo cheio, voltou ao Cruzeiro. Então não se estava já a fazer às galinhas do Tio Joaquim Ferrador?...   Valeu a Tia Helena que, ao ver as suas intenções correu com ele e fechou-lhe o portão. Tendo sido posto no olho da rua sem cerimónias o galo estava desolado. Quando o vi perto do portão do Tio Ferrador, já ele estava a ver a maneira de saltar o portão. Assim, dei uma corrida e fui buscá-lo mas, ele não se deixou agarrar. Num ápice entrou pela nossa quinteira dentro e meteu-se no galinheiro. 

Certo dia fui a Vila Meã e, ao passar pelo meio de umas latadas lá para os lados do Pereiro, vi que junto a um valado amarinhava a rama de uma aboboreira, (Abóbora porqueira). Como estava habituado a ver as aboboreiras a rastejarem no meio dos milhos achei estranho, por isso, aproximei-me para verificar melhor como era aquilo que, em vez de rastejar, subia pelos arbustos e silvas do valado. Ali descobri que ao longo do valado, estavam penduradas uma série de pequenas aboboreiras com duas barrigas, eram todas defeituosas. Uma barriga maior, depois afunilava para dar origem a outra barriga mais pequena. Intrigado com a cena, peguei numa e torci, torci, torci até desprender-se do pé onde tinha nascido. De seguida, meti a aboboreira debaixo da camisa e, ala em corrida até ao caminho do campo redondo. Dali até casa foi um saltinho.

O objectivo era fazer como a minha mãe: cortar a aboboreira em bocadinhos muito pequeninos e dar ao galo que se regalava todo. Engolia aquilo, bebia água, e lá ia ele de papo cheio com aquela crista muito encarnada e bem alta. Empertigava-se todo mostrando aquela peitaça de pluma multicolor e rabo altamente ornamentado a exibir-se perante todas as “meninas” que, em liberdade, tinham direito a passearem-se no Largo do Cruzeiro de Chamosinhos. Ele cresceu muito e, sabendo isso, fazia frente a qualquer outro galo que o desafiasse.

Passeava-se no Cruzeiro como um rei e toda a gente o admirava. Era bonito, grande e atrevido. Não se preocupava nada em se mandar a uma galinha mesmo com a dona ali por perto. Mas a aboboreira que eu trouxe de Vila Meã não se me ajeitava nada para a cortar tal como a minha mãe fazia. Assim, e como o meu amigo Necas estava em casa, levei a aboboreira comigo para lhe pedir ajuda: A intenção era ver se ele tinha uma faca grande para a cortar aos bocadinhos. Fomos para o lugar e, depois da eira entrámos no cabano onde estava o carro de bois. A aboboreira foi posta em cima do carro.

Andava o Necas de gatas lá num canto do cabano à procura não sei de quê quando apareceu o Tio Manuel do Alves, pai do Necas, vindo do lado do lugar com uma enxada às costas. Chegado ali, arrumou a enxada e, vendo a minha aboboreira em cima do carro, pegou nela e disse:
“Olha uma cabaça!... Quem foi que deu a cabaça?...”. Perguntou ele ao Necas.
O Necas não foi de meias medidas e logo despachou para mim:
“Foi o Pedruxo que a trouxe!...”.    
“Ah!... Então agora a tua mãe semeia cabaças?...”.

Fiquei tão atrapalhado que já nem sabia o que lhe havia de dizer:
Por fim lá veio a justificação: “Não Tio Manuel, foi o Adélio de Vila Meã que me deu para o meu galo!...”.
“Oh rapaz, isto nem um boi a come quanto mais um galo!...”.

Dito isto e sem mais explicações, pegou numa pequena corda que atou à cabaça, subiu para o carro de bois e toca a pendurar lá bem no alto a minha cabaça. Quando desceu do carro eu ainda esperava que ele me desse qualquer coisa para o meu galo, mas não. Virou as costas e lá foi ele para dentro de casa.
Irritado com a cena, virei-me para o Necas e disse-lhe: “Já viste?..., Agora não tenho nada para dar ao galo!...”.
Como os verdadeiros amigos são para as ocasiões, o Necas disse-me baixinho:
“Deixa ele sair que eu levo-te a casa uma saca de milho para o galo”.

Fiquei tempos sem fim sentado nos degraus do Senhor do Cruzeiro à espera de ver o Tio Manuel do Alves sair de casa. O meu galo, que estava habituado aos miminhos que eu lhe dava, andava por ali a rondar-me como que a perguntar: “Então!... Hoje não há nada?... Olha que eu estou cheio de fome!...”. Como eu compreendia bem o meu galo.      

Estava eu muito distraído a olhar lá para os lados da casa do Tio António do Real, quando o Tio Manuel do Alves passa com uma foucinha cravada no ombro em direcção ao regueiro. No minuto seguinte, chegou o meu amigo Necas com uma saca de milho escondida debaixo da camisa que devia ter meio alqueire. Era a comida para o meu galo. Fiquei muito satisfeito e o meu galo, por certo que ficou muito agradecido. Nesse dia teve direito a dois punhados de milho depois, e com a saca bem escondida da minha mãe, aquele milho foi racionado. Quando a minha mãe trazia alguma coisa para o galo, eu não lhe dava nada. Era preciso ter alguma reserva para uma eventual crise.

Além disso, de vez em quando o menino abastecia-se na quinteira dos outros. Bastava a distracção dos cancelos abertos e, lá estava ele a mandar-se às galinhas e já agora, a encher o papo. O Maio chegou e com ele um calor terrível. Os lavradores andavam muito preocupados com a seca das suas culturas. Cada dia que passava o Sol parecia que queimava mais. O meu galo andava de bico aberto. Não tinha vontade de comer e nem lhe apetecia sair da quinteira. Bebia, bebia água até mais não. O calor continuava a aumentar. Um dia, fazendo como que das tripas coração, foi dar uma voltinha ao Cruzeiro e não voltou. O meu galo não resistiu ao calor e...,

O Rei de Chamosinhos sucumbiu.

Chorar por um galo pode parecer ridículo mas...  Quando se chora por um amigo que faz parte do nosso coração... Não parece mal... Pois não?...    

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

OLHANDO O MEU PAÍS

A POÇA NOVA 

Quando eu deixei de ter medo do escuro e dos sítios onde poderia aparecer a “Velha Sarronca”, certo dia aventurei-me a ir para lá da casa do Tio Ferrador a caminho do monte. Caminho velho e cheio de pequenas pedras soltas, atravessado pelas raízes dos grandes pinheiros, levou-me até à ‘poça nova’. “A poça nova ficou assim conhecida por ter sido feita nos anos quarenta”. A Comissão dos Habitantes de Chamosinhos de então escolheram o sítio adequado, fizeram um grande buraco e colocaram lajes de pasta (granito da região) em toda a volta para segurar as terras, tendo em conta a saída de água controlada, naturalmente. 

Chegado lá, fiquei ali a ver a água a entrar na poça através de um cano em grés vinda de Fonte-Boa. Ela batia lá bem no fundo da poça vazia, fazendo aquele tradicional barulho de cascata. Então, sentei-me na borda da poça e fiquei ali à espera de a ver encher. Por mais água que caísse lá em baixo, até parecia que desaparecia sem eu conseguir ver por onde. Cheguei à conclusão que era muito difícil ver a água subir na poça. Por vezes acontecia que, quando lá chegava a poça estava cheia..., cheiinha a deitar por fora. Ali eu via nela um grande lago de água do qual tinha muito medo. Por isso a minha presença era bem de longe. Era enorme aquela poça. Aliás, naquele tempo para mim, tudo era grande.  

Eu andava encantado com a poça nova. Assim, sempre que a minha mãe ia trabalhar para fora e eu tinha de ficar em casa, quando me lembrava, lá ia ver a poça. A água a cair daquela maneira e a bater lá bem no fundo da poça fascinava-me. Certa vez quando lá cheguei, a poça estava a meio do seu enchimento. Assim, já não podia sentar-me na borda da poça e pôr os pés pendurados para o lado de dentro, por isso, fiquei por perto a vê-la encher.

Ao fim de muito tempo de espera, ouvi o motor de um automóvel que passava na E.N.13 a caminho do Fulão. Eu já estava habituado a ver o automóvel do Tio Serafim do Real que, todos os dias saía com ele logo de manhãzinha não sei para onde. Regressava à noite e era guardado no cabano que estava virado para o Senhor do Cruzeiro.  

Da minha casa ouvia o Tio Serafim e o irmão Camílio a darem à manivela, que estava colocada na parte da frente do carro, para o motor começar a trabalhar. Nos Invernos mais gelados daquele tempo, ficavam ali a dar à manivela tempos sem fim. Quando finalmente o carro acordava, lá iam à vida deles. (Era o Táxi do Serafim do Real que fazia serviço em Valença). Em Chamosinhos haviam dois Táxis: Um do Tio Serafim do Real e que eu via todos os dias, e outro do Tio Camílio do Melão que eu nunca o via. Mas carros a passarem na estrada em grande velocidade nunca tinha visto, assim, e como a poça não mostrava sinais de enchimento, fui até à estrada que se situava um pouco mais a Sul. Que cheirinho e tão lisinha que era a estrada. Automóveis... nunca mais chegavam. Sentei-me mesmo no meio e verifiquei que a estrada era um pouco oval. Mais tarde soube que era por causa das grandes chuvadas. Fartei-me de esperar para ver passar um carro.

Como não vinha nenhum decidi dar meia volta e voltar para perto da poça. Quando já estava quase a chegar, ouvi lá para os lados do Fulão os ruídos de um automóvel em movimento. Meia volta, uma corrida e, lá fiquei à espera de ver o automóvel passar. Ele chegou ao pé de mim num ápice, desaparecendo da mesma maneira. O mais incrível foi que eu não consegui ver o motorista. Então fiquei com a ideia de que aquele carro não levava ninguém. Quando voltei, já não parei na poça nova. Segui até ao Cruzeiro e andei por ali. À noite, estava eu com uma malga de sopa de canuxos à minha frente e a minha mãe à espera que eu a engolisse, quando ouvi chegar ao Cruzeiro o carro do Tio Serafim do Real. De repente, levantei-me do banco e toca a correr para o velho cancelo da quinteira. Eu queria ver bem de perto, se o automóvel trazia condutor ou se, tal como o que vi na estrada, andava sozinho.

Eu vi... E vi que o carro era conduzido pelo Tio Serafim do Real. O que eu não vi foi a minha mãe que já estava atrás de mim com a vergasta na mão. Surpreendido, ainda fiz uma tentativa para me esquivar mas não resultou. Ela agarrou-me pelo braço e toca a malhar até lhe apetecer. Depois, seguiram-se os canuxos que, sem saber como, até me souberam bem. (Vá lá a gente saber porquê...).
 
Naquela época em que a poça nova tinha tanta utilidade para os terrenos de cultivo, andava no ar um ‘Boato’ que muito alegrava os habitantes de Chamosinhos:

- A água de Fonte-Boa, vai chegar ao Largo do Cruzeiro -  Diziam que seria feito um fontanário e que a água chegava e sobrava para abastecer toda a população. Acabava-se assim, o martírio das mulheres irem todos os dias, de cântaros à cabeça, buscar água á fonte.

A água de Fonte-Boa era de grande qualidade e quantidade. A água de Fonte-Boa nascia nos montados bem perto das leiras do baldio de Chamosinhos e corria a céu aberto por meio de tojos a carrascos podendo-se beber em qualquer circunstância. O ‘Boato’ chegou a criar formas de realidade. Mas... o tempo foi passando e o ‘malogrado boato’ foi-se esfumando. Tal como as nuvens que aparecem e andam lá nas alturas qual imaginário cheio de esperança e vai desaparecendo sem ninguém dar por isso. Os interesses estavam instalados e por isso, o medo, o egoísmo ou mesmo a inveja superaram o interesse geral a favor daqueles que tinham meia dúzia de terras para regar. Pensavam eles que a água que era destinada ao fontanário lhes ia fazer muita falta para os seus cultivos.   

Hoje, a maior parte daqueles terrenos estão abandonados e o Lugar de Chamosinhos está a beber água do garrafão.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

OLHANDO O MEU PAÍS

O FEAL DAS BRUXAS

No tempo em que eu ia para a escola de Vila Meã, um dos três caminhos que tinha para lá chegar, era pelo Feal. Nessa época, nunca ouvi ninguém dizer que aquele sítio de chamava Feal das Bruxas. Só quando, por razões meteorológicas, aparecia lá bem nas alturas o Arco-íris, as pessoas diziam: “Olha o Arco-íris!... Estão as bruxas a pentearem-se no Feal”. Isso era o que eu ouvia, de resto, o tratamento referente àquela zona era: O Feal.

O Feal configurava-se de Sul para Norte, era um sítio de lameiro com uma pequena inclinação para Oeste, em que as nascentes se sucediam umas às outras. Era muito interessante ver, nas centenas de pequenas poças ali existentes a água a nascer formando borbulhinhas constantes. Depois, a água saía dessas poças e aparentemente sem rumo, chegavam a uma Congosta que a levava ao esteiro em direcção ao Rio Minho. O que eu nunca consegui perceber era como apareciam nas poças mais largas pequeníssimos peixes, ‘bogardos’, aos milhares que, à medida que iam crescendo desapareciam e logo outros ocupavam o seu lugar.

Quantas vezes dei por mim, deitado no panasco que circundava as poças, a colocar a minha mão direita totalmente aberta, bem lá no fundo mesmo encima da efervescência provocada pelo nascimento da água, na esperança de que um peixinho fosse curioso e tivesse a audácia de ir ver que raio de coisa era aquela. Como eles eram muito espertos, limitavam a observação à distância e, sempre que eu mexia um único dedo, desapareciam sem me darem oportunidade de ver por onde. Nos Invernos mais rigorosos em que predominavam as grandes geadas, deixando um manto branco em toda a região, era ver naquelas poças com uma camada de gelo que deveriam ter mais de um centímetro de grossura.

Nessa época, quando ia para a Escola e passava por ali, por vezes e por curiosidade, metia as mãos numa dessas poças e retirava de lá uma peça de gelo do tamanho da poça. Depois, mostrava aos colegas da escola que me acompanhavam o grande vidro de gelo. Assim, e depois das brincadeiras com o gelo e de mãos geladas, lá ia eu a bater o dente até à escola onde a professora, na oportunidade, fazia o ‘favor’ de me as aquecer com algumas reguadas.  

O Feal tinha um caminho que servia de passagem para Vila Meã mas, no inverno esse caminho ficava intransitável. A canalha que ia para a escola utilizava as pequenas moitas e saltava de uma para a outra para não se atulhar na lama. Por vezes utilizava o bordo do regato de captação de águas para regadio que, na época, era conduzida para as terras de cultivo.

Os homens das gerações anteriores que tinham terrenos de cultivo nas imediações do Feal, viam a água a nascer e a escapar-se para o Rio Minho. Por isso, juntaram-se todos e, toca a abrir um grande regato de maneira a que a água fosse ali acumulada e depois utilizada na rega dos campos.

Assim, e na parte mais elevada do lameiro, nasceram dois regatos:
Um que partia do Feal das Hortas, relativamente estreito e que levava a água para os campos do lado Oeste do Feal onde se juntava com as águas que vinham do Feal do Poço lá para os lados da Trelaveiga e da Fonte de Vila Meã. Outro de maiores dimensões captava a água que vinha do lado do Fial das Hortas e que regava as terras a Norte do Feal.   

Era neste regato alargado que grande parte das mulheres de Chamosinhos iam lavar a roupa. Á cabeça, um alguidar de barro cheio de roupa para lavar. Nas mãos, um banco de madeira próprio para se ajoelhar. Era vê-las todas aligeiradas pelo caminho da Miranda em direcção ao Feal. Depois da pequena descida cheia de pequenas pedras soltas, lá chegavam elas à “lavandaria” a céu aberto. A água que ali passava podia-se beber sem qualquer escrúpulos. Era um produto de alta qualidade e acabado de nascer.

Que o digam os milhares de rãs que, à noitinha faziam tanto barulho que se ouvia no largo do Cruzeiro. Que o digam as centenas de enguias que faziam daquele regato o seu habitat proferido. Que o digam os bogardos que, sem nunca ter conseguido ver como ali chegavam, faziam de todas as poças ali existentes, as suas maternidades.   

Quando as mulheres chegavam ao Feal, mandavam o banco para o meio do chão e depois, com o cuidado que era necessário ter, tiravam o alguidar da cabeça e colocavam-no ao lado direito da pedra onde iam esfregar a roupa. O banco era colocado na frente de uma das três pedras de granito existentes na borda mais larga do regato. De seguida davam início à lavagem da roupa. Depois, era ver aquela espuma de sabão a deslizar muito devagarinho, fazendo pequenos círculos de acordo com o movimento da água ao longo do rego que a levava ao regueiro.

Como no lado oposto das pedras de lavar roupa existia uma área bastante grande e atopetada de panasco, no final das lavagens, a roupa era ali estendida para corar. Além das nascentes sempre constantes, no Feal também existiam Salgueiros, Amieiros e diversa vegetação dispersa por todos os lados.

Certo dia estava eu no Cruzeiro e ouvi, um homem já de idade a dizer ao meu Padrinho:
“Oh trilho!... Olha que hoje é o dia do acasalamento das enguias do Feal!... Já foste ver?...”.
“Já estou farto de ver isso!....”. Resposta seca do meu padrinho.
Eu que nunca tinha visto isso, e nem sequer sabia o que queria dizer acasalamento, pensei:
“Que coisa tão estranha!...”.    
Dali ao Feal, passaram pouco mais de trinta segundos. Quando lá cheguei fiquei deslumbrado:
Centenas de pequenas enguias estavam em movimento constante lá bem no fundo e junto ao lodo do regato do Feal. Elas entrelaçavam-se umas nas outras, mergulhavam no lodo onde desapareciam, para voltarem no momento seguinte novamente entrelaçadas. Foi a única vez na minha vida que vi tal espectáculo.  

Não havia dia nenhum que eu não fosse ao Feal. Ali, era a força da Natureza que ordenava.
Certo dia o “Progresso” chegou ao Feal. As águas das nascentes que livremente corriam em direcção ao regato com destino ao Rio Minho foram atulhadas para dar lugar a uma estrada que faz a ligação de Chamosinhos para Vila-Meã.

Assim, acabaram-se as dificuldades que o ser humano tinha ao passar por um Pântano Natural, Selvagem mas cheio de vida. Ali predominavam as enguias, as cobras de água, as rãs, os sapos, os bogardos, os patos bravos, etc. Todos viviam em Paz.
E assim sucumbiu o Feal das nascentes, das enguias e das rãs, para dar lugar ao Feal das Bruxas. 

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

OLHANDO O MEU PAÍS

SAGULFES

Sagulfes é uma zona de planície que está protegida por duas montanhas, uma a Este e outra a Oeste. É bastante larga, tem início lá para os lados de São Julião e estende-se até perto da E.N.13. Pelo meio serpenteia a Ribeira das Ínsuas que e vai desaguar ao Rio Minho. Nas montanhas predominam os Pinheiros, o tojo e o carrasco mas, nas encostas destas, quem manda são as Urzes. Na planície cultiva-se o milho.

O Moinho da Quebrada foi construído bem junto ao sopé da montanha Oeste situado numa linha de água que era desviada a montante da Ribeira das Ínsuas. Aquele moinho trabalhava 24 horas por dia. O acesso ao moinho e às terras era feito por um caminho que descia a encosta com grande inclinação e era atopetado de pequenas pedras soltas.

Existia duas maneiras de descer a encosta: Uma, pelo caminho cheio de pequenas pedras que descia na horizontal acabando bem distante do moinho. Outra, por um carreiro também de pedras, cheio de tojo e carrascos que descia na vertical. Por ali, valia a existência dos carrascos que ajudava quem ali passava porque, doutra maneira, o voo era garantido.

Um pontilhão feito com troncos de pinheiro atravessava o rego de água do moinho, e assim se chegava mais depressa ao Moinho da Quebrada. Este moinho que transformava os grãos de milho em farinha, estava muito distante da povoação, era apenas utilizado pelos habitantes de Chamosinhos que, para lá chegarem tinham de fazer o seguinte percurso: Quem partia do Cruzeiro de Chamosinhos tomava o caminho do monte em direcção à Chão. Aí apanhava a E.N.13 via Valença, e saía para a estrada da Silva. Já bem perto do final da Quinta do Arraial, um caminho à esquerda levava-nos até ao sítio onde, pouco a pouco, acabou por ser a primeira lixeira a céu aberto na Freguesia.

Ultrapassando essa zona, e continuando pelo caminho de terra e pedras por entre pinheiros e tojos à medida que nos aproximávamos da descida, transformava-se em caminho de pedras soltas que só acabava no fundo da ravina. Este era o percurso mais rápido que existia no meu tempo. Naquele sítio, o montado Oeste foi cortado pela força das águas das chuvas que todos os anos assolavam aquela região originando um pequeno vale que tornou aquela zona paradisíaca.

Carvalhos, ciprestes, austrálias e tantas outras árvores e arbustos faziam com que o rego de água que serpenteava pela descida formasse várias cascatas que eram o gozo da canalha quando se deslocavam para ali a acompanhar os mais crescidos na lavoura. Aves das mais diversificadas espécies povoavam aquela zona. Mas, eram os Melros e os Gaios que mais barulhos faziam quando nos viam por perto. Adorava ouvir ao longe o Cuco a anunciar a chegada da Primavera. Adorava ver o Pica-Pau agarrado às árvores a ensaiar o seu buraco. Adorava ver os Gaios de goelas abertas a fazerem voos rasantes junto da canalha, como que a perguntar: “O que é que vocês estão aqui a fazer?... Ala daqui para fora”. Simulavam o ataque directo com a intenção de nos desviar dos seus ninhos. Adorava ver os Melros de bico amarelo e muitas outras aves, no meio das terras lavradas a meterem o bico nos pequenos buraquinhos para se alimentarem das minhocas e outras larvas ali existentes. Adorava ver os Milhafres, os Corvos, as Pegas, as Rolas e tantas outras espécies que por ali habitavam em paz.
 
Para a canalha Sagulfes durante o dia era um local de alegria, diversão e beleza. À noite tornava-se uma zona de medo... muito medo. Lobos, Lobisomens, Bruxas, animais que no escuro da noite choravam como crianças e não sei que mais, preenchiam o imaginário dos mais velhos que não perdiam a oportunidade de contar nos serões histórias do arco-da-velha fazendo-me pôr os cabelos de pé.

No entanto, haviam mulheres de Chamosinhos que, de enxada às costas e sem qualquer medo ou receio se deslocavam ao Moinho da Quebrada às duas ou três horas da manhã, para verificar se a sua moagem estava a correr bem. (É que por vezes, o rego que levava a água ao moinho galgava as protecções e, sem água, o moinho parava).  Sagulfes fazia e ainda faz parte dos meus sonhos. Mas aos poucos, o Homem se encarrega de destruir tudo o que a natureza nos oferece gratuitamente. E assim, este pequeno paraíso sucumbiu a favor do progresso.

Ali nasceu um grande pilar onde se apoia uma Auto-estrada.