sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

OLHANDO O MEU PAÍS

O FEAL DAS BRUXAS

No tempo em que eu ia para a escola de Vila Meã, um dos três caminhos que tinha para lá chegar, era pelo Feal. Nessa época, nunca ouvi ninguém dizer que aquele sítio de chamava Feal das Bruxas. Só quando, por razões meteorológicas, aparecia lá bem nas alturas o Arco-íris, as pessoas diziam: “Olha o Arco-íris!... Estão as bruxas a pentearem-se no Feal”. Isso era o que eu ouvia, de resto, o tratamento referente àquela zona era: O Feal.

O Feal configurava-se de Sul para Norte, era um sítio de lameiro com uma pequena inclinação para Oeste, em que as nascentes se sucediam umas às outras. Era muito interessante ver, nas centenas de pequenas poças ali existentes a água a nascer formando borbulhinhas constantes. Depois, a água saía dessas poças e aparentemente sem rumo, chegavam a uma Congosta que a levava ao esteiro em direcção ao Rio Minho. O que eu nunca consegui perceber era como apareciam nas poças mais largas pequeníssimos peixes, ‘bogardos’, aos milhares que, à medida que iam crescendo desapareciam e logo outros ocupavam o seu lugar.

Quantas vezes dei por mim, deitado no panasco que circundava as poças, a colocar a minha mão direita totalmente aberta, bem lá no fundo mesmo encima da efervescência provocada pelo nascimento da água, na esperança de que um peixinho fosse curioso e tivesse a audácia de ir ver que raio de coisa era aquela. Como eles eram muito espertos, limitavam a observação à distância e, sempre que eu mexia um único dedo, desapareciam sem me darem oportunidade de ver por onde. Nos Invernos mais rigorosos em que predominavam as grandes geadas, deixando um manto branco em toda a região, era ver naquelas poças com uma camada de gelo que deveriam ter mais de um centímetro de grossura.

Nessa época, quando ia para a Escola e passava por ali, por vezes e por curiosidade, metia as mãos numa dessas poças e retirava de lá uma peça de gelo do tamanho da poça. Depois, mostrava aos colegas da escola que me acompanhavam o grande vidro de gelo. Assim, e depois das brincadeiras com o gelo e de mãos geladas, lá ia eu a bater o dente até à escola onde a professora, na oportunidade, fazia o ‘favor’ de me as aquecer com algumas reguadas.  

O Feal tinha um caminho que servia de passagem para Vila Meã mas, no inverno esse caminho ficava intransitável. A canalha que ia para a escola utilizava as pequenas moitas e saltava de uma para a outra para não se atulhar na lama. Por vezes utilizava o bordo do regato de captação de águas para regadio que, na época, era conduzida para as terras de cultivo.

Os homens das gerações anteriores que tinham terrenos de cultivo nas imediações do Feal, viam a água a nascer e a escapar-se para o Rio Minho. Por isso, juntaram-se todos e, toca a abrir um grande regato de maneira a que a água fosse ali acumulada e depois utilizada na rega dos campos.

Assim, e na parte mais elevada do lameiro, nasceram dois regatos:
Um que partia do Feal das Hortas, relativamente estreito e que levava a água para os campos do lado Oeste do Feal onde se juntava com as águas que vinham do Feal do Poço lá para os lados da Trelaveiga e da Fonte de Vila Meã. Outro de maiores dimensões captava a água que vinha do lado do Fial das Hortas e que regava as terras a Norte do Feal.   

Era neste regato alargado que grande parte das mulheres de Chamosinhos iam lavar a roupa. Á cabeça, um alguidar de barro cheio de roupa para lavar. Nas mãos, um banco de madeira próprio para se ajoelhar. Era vê-las todas aligeiradas pelo caminho da Miranda em direcção ao Feal. Depois da pequena descida cheia de pequenas pedras soltas, lá chegavam elas à “lavandaria” a céu aberto. A água que ali passava podia-se beber sem qualquer escrúpulos. Era um produto de alta qualidade e acabado de nascer.

Que o digam os milhares de rãs que, à noitinha faziam tanto barulho que se ouvia no largo do Cruzeiro. Que o digam as centenas de enguias que faziam daquele regato o seu habitat proferido. Que o digam os bogardos que, sem nunca ter conseguido ver como ali chegavam, faziam de todas as poças ali existentes, as suas maternidades.   

Quando as mulheres chegavam ao Feal, mandavam o banco para o meio do chão e depois, com o cuidado que era necessário ter, tiravam o alguidar da cabeça e colocavam-no ao lado direito da pedra onde iam esfregar a roupa. O banco era colocado na frente de uma das três pedras de granito existentes na borda mais larga do regato. De seguida davam início à lavagem da roupa. Depois, era ver aquela espuma de sabão a deslizar muito devagarinho, fazendo pequenos círculos de acordo com o movimento da água ao longo do rego que a levava ao regueiro.

Como no lado oposto das pedras de lavar roupa existia uma área bastante grande e atopetada de panasco, no final das lavagens, a roupa era ali estendida para corar. Além das nascentes sempre constantes, no Feal também existiam Salgueiros, Amieiros e diversa vegetação dispersa por todos os lados.

Certo dia estava eu no Cruzeiro e ouvi, um homem já de idade a dizer ao meu Padrinho:
“Oh trilho!... Olha que hoje é o dia do acasalamento das enguias do Feal!... Já foste ver?...”.
“Já estou farto de ver isso!....”. Resposta seca do meu padrinho.
Eu que nunca tinha visto isso, e nem sequer sabia o que queria dizer acasalamento, pensei:
“Que coisa tão estranha!...”.    
Dali ao Feal, passaram pouco mais de trinta segundos. Quando lá cheguei fiquei deslumbrado:
Centenas de pequenas enguias estavam em movimento constante lá bem no fundo e junto ao lodo do regato do Feal. Elas entrelaçavam-se umas nas outras, mergulhavam no lodo onde desapareciam, para voltarem no momento seguinte novamente entrelaçadas. Foi a única vez na minha vida que vi tal espectáculo.  

Não havia dia nenhum que eu não fosse ao Feal. Ali, era a força da Natureza que ordenava.
Certo dia o “Progresso” chegou ao Feal. As águas das nascentes que livremente corriam em direcção ao regato com destino ao Rio Minho foram atulhadas para dar lugar a uma estrada que faz a ligação de Chamosinhos para Vila-Meã.

Assim, acabaram-se as dificuldades que o ser humano tinha ao passar por um Pântano Natural, Selvagem mas cheio de vida. Ali predominavam as enguias, as cobras de água, as rãs, os sapos, os bogardos, os patos bravos, etc. Todos viviam em Paz.
E assim sucumbiu o Feal das nascentes, das enguias e das rãs, para dar lugar ao Feal das Bruxas. 

6 comentários:

  1. Meu bom amigo Sanches!

    Que delícia ler estes seus textos!
    Sente-se o amor total, desmedido à mãe Natureza... de quem todos tanto dependemos mas que hoje tão poucos respeitam. Que tristeza imensa, até dói a alma.
    Passar de Feal na natureza, dum lugar encantado onde proliferava a vida para Feal das Bruxas é coisa do Diabo. É anti-natura!!!

    Nos seus contos, há muita coisa onde me revejo.
    Julgo que temos um grau muito próximo, senão gémeo, no que respeita a sensibilidade.

    Também na Quinta do Santo Amaro em Reborêda existe ainda um lago natural onde se recolhe a água duma nascente. Segue-se o lameiro onde pastava o gado e onde se estendia a roupa a corar.
    Essa água, que não para nunca de correr, segue para duas presas mais abaixo. Estas águas eram em tempo essenciais para a rega dos campos imensos de culturas diversas todo o ano.
    Haviam dias marcados para que todos regassem. Isto depois da morte da minha avó paterna, quando a família começou a dividir-se por contracção de matrimónio e construindo dentro da Quinta as suas próprias casas.
    O meu avô, o velho Tio António Santo Amaro era ainda vivo.
    Um dia, o meu tio Lourenço que tinha uma criada, quase mata o meu tio António por causa da água.
    A criada foi buscar a água no dia errado e foi o fim do mundo.
    Lembro-me como se fosse hoje, mas era uma menina pequenina, nem 10 anos devia ainda ter na altura.
    Nesse dia perdi uma pulseira de ouro. No meio da luta, lá foi sacudida e a pulseira desapareceu!

    Também me lembro de ver como a minha tia Júlia lavava a roupa lá nessa presa.
    Tal e qual como descreveu, mas lembro-me que o sabão era poupado ao máximo, nem sei como a roupa depois ficava tão branquinha e bem cheirosa.

    Ah! e a vida que havia naquela presa.
    Nunca ma atrevi a meter os pés lá dentro por medo das cobras e via nas enguias verdadeiras cobras também.
    Proliferavam os "girinos" que julgo serem os embriões das rãs.
    Quando chegava à presa de mansinho via toda aquela maravilha.
    Com a minha chegada, as rãs saltavam todas para dentro d'água e era uma alegria imensa ouvi-las coaxar.

    Que bom que foi lembrar tudo isto.
    Obrigada
    Beijinhos

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  2. Mais um pedacinho de uma vida
    Ainda bem que nos dá a conhecer, desta forma brilhante, o que foram esses tempos.
    Grato e continue.
    Abarço do
    JF

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  3. Amigo António, estou a trata-lo assim porque de certa maneira já o conhece na Casa Da nossa amiga Fernanda, e tenho lido as suas histórias, sempre com muita atenção, porque eu embora tenha nascido depois da guerra acabar, também conheci tempos difícies.
    Obrigado por partilhar essas história tão lindas e tão tristes ao mesmo tempo.

    Um abraço,
    José.

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  4. Oi Antonio

    Acompanhei sua história pela querida Ná e vim dizer obrigada por ter deixado seu link.
    Agora com tempo poderei ler-te. Apaixonei-me por seus escritos.

    Bjs no coração!

    Nilce

    www.nilceguerreira.com

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  5. Amigo Sanches!

    Vim agradecer-lhe do coração a sua visita e palavras sempre doces que me deixa.
    Obrigada!

    É com satisfação que registo aqui algumas visitas de amigos.
    O José é poeta e um bom amigo algarvio.
    A Nilce, com o seu belo sorriso é brasileira e é um doce de pessoa.

    O JF do Assim é... é o meu marido, o fotógrafo que bem conhece. O José Ferreira.

    Mais virão, especialmente após o próximo conto, que lembro aqui e agora, que ainda não me mandou.

    beijinhos para si e sua esposa que também conheci e gostei muito.

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  6. Amigo Sanches

    Comecei no post acima e vejo que tenho muito a ler desta história o que voltarei com mais tempo.

    Beijinhos

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