domingo, 13 de março de 2011

OLHANDO O MEU PAÍS

FONTE-BOA  I

O Baldio de Chamosinhos tem início um pouco antes da zona da Chão. É atravessado pela E.N.13. Imediatamente a seguir à estrada, encontrava-se um grande pinheiral que se prolongava até ao fim da Quinta do Arraial lá bem para os lados de Fonte-Boa. Ali, acabava o pinheiral, mas seguia-se um grande montado composto por tojo e carrasco, salpicado por um ou outro pinheiro que tive a audácia de germinar em terrenos que não lhes era propício. Eram as leiras de todos os habitantes de Chamosinhos. Fonte-Boa situava-se no sítio denominado por Monte da Chãs, precisamente na divisória do grande pinheiral com a zona das leiras.

Quando eu comecei a ir para o monte com a minha mãe, raramente chegávamos a Fonte-Boa. Ela cortava o tojo e o carrasco onde ele existia, fazia as respectivas paveias e, como não tinha carro de bois para as transportar, colocava-as dentro dum grande cesto de verga (vime) que, depois de cheio, pegava nele e ala para cima da cabeça. Depois era o regresso, ela com o cesto cheio à cabeça e eu, com a enxada às costas sem jeito nenhum e todo embaraçado com o cabo que era enorme e, constantemente batia no chão à minha frente. Quando chegávamos a casa era só despejar o cesto. A cena repetia-se até ser transportado todo o produto cortado para a quinteira, onde ela fazia algum estrume para plantar e criar na nossa ”quinta” as insuportáveis couves-galegas. A primeira vez que fui a Fonte-Boa, foi numa apanha do cisco (caruma).

Enquanto a minha mãe e os outros andavam numa ‘fona’, de engaço nas mãos a juntar a grande quantidade de cisco existente no chão ao logo de todo o baldio, eu e os meus amigos da mesma idade fomos andando monte acima e só parámos em Fonte-Boa. Alguns já conheciam o sítio mas eu, embora já tivesse andado várias vezes no monte com a minha mãe ao tojo, às galhas, às pinhas e sei lá que mais, a Fonte-Boa ainda não tinha chegado. A primeira coisa que eu mais admirei quando lá cheguei foi a cor da terra. Existia ali um grande monte de terra solta proveniente de uma vala que tinha sido aberta para aproveitamento e encaminhamento da grande quantidade de água que ali nascia. A terra era branquinha tal como as pedras que nela se encontravam. 

Como todos já andavam lá no fundo da vala a apanhar pedras brancas eu, um pouco a medo, lá me deixei escorregar pela ladeira a baixo e juntei-me a eles. Depois das várias brincadeiras da canalha seguimos o enfiamento da vala e, uns metros à frente encontramos uma mina. Alguns meteram-se por ela a dentro como se nada de mal lhes pudesse acontecer, mas eu...  Só de ver o escuro de breu e o rego de água que de lá saía, logo pensei na maldita ‘Velha Sarronca’ que se encontrava em todo o lado que era escuro. Como nesta cena de nega eu não estava sozinho, toca a subir a ladeira novamente para terra firme. Já lá em cima, e olhando bem para o buraco de entrada da mina, o Necas teve uma ideia: “Vamos lá para a frente e assustamos os gajos”.

Eu não fazia a mínima ideia como ia-mos assustar os outros meninos que se meteram no buraco da mina. Fomos andando e, quando já estávamos em frente ao muro que marcava o final da Quinta do Arraial, comecei a ver uma grande quantidade de poços abertos, e alinhados no mesmo enfiamento, sem qualquer protecção. Então a ideia do Necas foi apresentada: Cada uma de nós, que eram uns três ou quatro, deitava-se na borda de um poço e, de cabeça virada para o buraco, imitava-mos um lobo. Uns minutos depois lá estávamos deitados em cima de carrasco de goelas abertas: uuuu, uuuu, uuuu. De repente, começo a ver a saírem do poço uns pássaros muito esquisitos, com asas sem penas a voarem em direcção aos meus olhos que me meteram um medo de morte.

Num ápice fugi dali a sete pés. Os outros, ao verificarem a minha atitude, não se fizeram velhos. Quando voltamos ao local da vala e terra branca, já lá estavam os afoitos que, segundo eles, tinham virado para trás sem explorar devidamente a mina por não se ver nada. Depois desviámo-nos um pouco para Oeste. Aí havia água por todos os lados. Alguma corria por um rego em direcção a uma pequena poça feita para que ela entrasse num buraco que a levava à poça nova.  De resto, não se punha o pé em lado nenhum que não tivesse água. Para evitar molhar-mos as botas, saltava-mos de moita em moita mas, mesmo assim, quando atingimos o local seco e tiramos as botas dos pés, de lá saia quase meio litro de água. A mim valeu o facto de a minha mãe estar muito entretida na faina, porque senão!...

A partir daquele dia Fonte-Boa para mim, era uma fascinação. Arranjava sempre argumentos para ir a Fonte-Boa. Certo dia, desafiei o Necas para ir-mos a Fonte-Boa beber água. Como ele não quis ir, fui sozinho. Penso que deveria ter uns 7 ou 8 anos dado que ainda não andava na escola. Nessa altura eu já lá tinha ido pelo menos três ou quatro vezes, mas sempre acompanhado, ou com a minha mãe que ia cortar tojo, ou mesmo com os meus amigos para as brincadeiras na água fresquinha que dava para beber e tudo. Mas, naquele dia eu tinha mesmo de ir a Fonte-Boa. As razões específicas já não fazem parte das minhas lembranças. Como o Necas me deu a nega, toca a avançar sozinho pelo monte acima a correr e cantarolar com muita alegria.

À medida que o pinheiral se adensava e as moitas de tojo se alongavam, a minha euforia foi baixando. Da correria desenfreada, passei a passo de corrida. Quando cheguei a uma “casota” feita em tijolo instalada a meio do baldio perto do caminho, ouvi um barulho muito esquisito que vinha lá de dentro. Curioso, e ainda sem medo, subi por ela a cima para ver o que se passava. Já lá em cima e sentado na laje que tapava a casota, espreitei e verifiquei que era a água que vinha de Fonte-Boa para a poça nova que, ao chegar ali mudava de cano e fazia uma barulheira que mais parecia uma grande cascata. Tirada a dúvida voltei ao caminho. O dia ainda ia alto mas, a luminosidade no meio do pinheiral era um pouco diminuída pela acção das grandes copas dos pinheiros.
   
Mas, o ventinho a zunir nas agulhas dos pinheiros tornava o sítio um pouco aterrador. Ele não assobiava da mesma maneira como o fazia de noite quando tentava passar por baixo da porta de minha casa. Aquela sonoridade doce que passava muito acima da minha cabeça, com os pinheiros a mexerem-se todos ao mesmo tempo quando eu passava, zunindo mais ou menos conforme as rajadas de vento, não me estava a agradar nada, mesmo nada. Como eu não tinha medo, mesmo com aquela ameaça pinheiral, continuei a caminho de Fonte-Boa. Para ultrapassar ‘aquilo’ que já me estava a pôr nervoso optei por cantar, cantar muito alto. Mas cada vez que olhava para cima, o raio dos pinheiros até pareciam querer deitar-me os tentáculos. Até já via as moitas do tojo a andarem de um lado para o outro.

Quando já estava naquele de, o melhor é virar para trás, começo a ver por entre os troncos dos pinheiros o grande montado das leiras de Chamosinhos. Grande alívio. Ali já não havia vento nem pinheiros a porem-me a cabeça à roda. Uma corrida acelerada e, eis-me em Fonte-Boa. Não foi necessário olhar muito. Bastou ouvir e sentir nos pés o chapinhar da água fresquinha e livre que serpenteavam pelo meio das moitas de carrasco e tojo ali existentes. Estava eu muito contente e distraído com aquela água que sempre corria em todos os sentidos quando, mesmo ali ao meu lado, saltou um pequeno ‘Lobo’. Deu um salto tão grande que me fez cair de rabo no meio dos carrascos atolados na água. Quando me levantei estava todo encharcado mas do lobo, nem rastos. As minhas pernas tremiam por todos os lados.

Depois de recomposto do susto, parecia um foguete pelo monte a baixo. Nem sequer tive tempo de pensar nos Pinheiros que me queriam agarrar. Quando cheguei ao Largo do Cruzeiro nem podia falar. Estava a contar a cena do Lobo ao Necas, quando passou junto a nós o Evaristo da Tia Constância. O Necas ao vê-lo, logo lhe foi dizer: Evaristo!... sabe uma coisa?... O Pedruxo viu um Lobo em Fonte-Boa!...”.  O Evaristo virou-se para nós e disse: “Um Lobo?... Não é um Lobo, é uma Lebre!.., eu também já a vi por ali. É muito novinha mas qualquer dia vem cá parar”. E assim foi.... Pouco tempo depois a Lebre foi apanhada na mina de Fonte-Boa e posta na capoeira das galinhas da tia Constância para quem a quis ver. O destino que lhe foi dado, nunca o soube mas calculo.

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