quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

OLHANDO O MEU PAÍS

O MOINHO DE VENTO QUE FALA

Chamam-me Moinho de Vento porque para moer os cereais dependo do vento. Dizem que sou movido à força da energia eólica. Tenho uns primos que também moem cereais mas esses dependem da água, chamam-lhes moinhos de água ou azenhas. Dizem que trabalham à força da energia cinética.
Já sou muito velhinho e nem sequer me lembro quantos anos tenho. A minha geração tem mais de mil anos. Mas o meu tratador também já é muito velhinho, chamam-lhe “o moleiro”, não sabe ler nem escrever. Só sabe contar o dinheiro, medir os alqueires, o arrátel  e tirar as maquias das sacas para se pagar do meu trabalho. Mesmo assim dizem que é analfabeto.

Nasci em Geraldes perto de Peniche, daqui via os meus irmãos, o mais próximo está no Alto do Veríssimo. Trabalhávamos dia e noite sem parar.
Nesta planície todas as terras eram semeadas com trigo. Adorava ver aquele manto verdejante fazendo grandes ondulações de acordo com o vento que soprava. O calor ia apertando e tudo começava a mudar de cor. De repente, quando dava por isso, a grande paisagem verdejante tornava-se dourada. Era o trigo a amadurecer e a ficar pronto para ser ceifado.
Depois, e aos poucos começavam a aparecer as mulheres que de lenço apertado nas cabeças e foucinhas nas mãos, punham-se umas ao lado das outras e, num ápice, ceifavam uma terra de trigo na totalidade. Uma vez ceifado, era atado em molhinhos e transportado para a eira que era ali um pouco mais abaixo.

Ali, homens e algumas mulheres malhavam o trigo para separar os grãos da palha. Estavam ‘naquilo’ dias inteiros. No final as grandes peneiras tratavam de limpar o grão que era de imediato ensacado. A seguir, era levado para casa onde o guardavam em grandes caixas de madeira para evitar as humidades. A palha era separada do restolho e assim aparecia o colmo para encher os colchões das camas. Foi assim durante centenas e centenas de anos.
Em meados do Século XX chegou a “evolução” à agricultura. Com ela, apareceram as máquinas debulhadoras que faziam quase tudo: Elas malhavam, separavam os cereais, ensacavam e, vejam só, até atavam a palha fazendo molhos rectangulares ou redondos.

Eram os tempos modernos. Eu via os tractores nas eiras empenhados em fazer movimentar aquela engenhoca: Enfiavam-lhe os molhos de trigo ou centeio por uma “boca” existente lá nas alturas e, logo a seguir, saíam os cereais para os sacos por um lado e a palha devidamente atada em fardos por outro lado.
Estas máquinas “engenhocas”, que nem sequer sabiam andar, acabaram com os ceifeiros, os malhadores e até com o “colmo” para encher os colchões. Enfim, evoluiu tanto, tanto, que acabou com tudo. Até parece que os homens perderam o juízo. Não sei o que lhes deu que de repente abandonaram as terras e assim, deixaram de produzir o pão que foi o fruto de uma luta cerrada durante toda a sua existência.

Eu que trabalhava vinte e quatro horas por dia a moer os cereais, vejo-me agora sem nada para fazer. A maior parte dos meus irmãos já desapareceram. Aquele que estava mais perto de mim ali no alto tiraram-lhe o coração e fizeram dele uma habitação... Já se viu coisa assim? Um moinho de vento com as suas hélices paradas para o resto da vida! Acho mesmo ridículo. A maior parte dos meus irmãos foram abandonados e aos poucos, desfizeram-se sem deixarem rasto. Eu tenho sorte porque o meu tratador, embora já muito velhinho, ainda consegue arranjar alguma coisa para fazer. Agora até milho me dá para partir ou mesmo para moer. Para que será?
Será que os homens deixaram de comer pão?

Agora, quando olho para a planície que me rodeia só vejo couves. Couves, couves e mais couves.
Há umas que nascem com grandes folhas, o meu tratador diz que é a couve portuguesa. Depois aparecem outras com uma espécie de bolinha escondida lá no meio das folhas, o meu tratador diz que é a couve lombarda. Mas há mais: há outras que têm a bolinha no meio que parece uma bola de rugby, o meu tratador diz que é coração de boi. Há cada coisa!... Coração de boi. Comparar uma couve com o coração de um animal corpulento, acho que está a ficar tudo maluco.  Depois, também aparecem outras que tem uma flor muito branquinha escondida no meio das folhas verdes, o meu tratador diz que é a couve-flor. Grande descoberta, isso está bem de ver.       
Será que os homens de hoje só comem couves?

O meu tratador agora está sempre sentado à entrada da porta. Diz que tem dificuldades em andar para cima e para baixo como sempre o fez, em vez de ir bater às portas das pessoas para arranjar trabalho para mim, alapa-se ali à espera de visitas. Há cada uma!.... Antigamente toda a gente sabia quem eu era, como funcionava e para que servia. Agora aparecem por aqui umas pessoas que ninguém as entende: falam, falam, falam e nada.  Não percebo patavina do que eles dizem. De repente, calam-se todos e logo alguém inicia um rol de perguntas: Como te chamas, quantos anos tens, como funcionas, para que serves e, tudo…
Não sei para que são necessárias tantas perguntas se a maior parte deles nem sequer ouvem as minhas respostas.

Depois, sobem pelas escadas acima, andam por aqui de boca aberta, mexem em tudo, enfarinham-se todos e ala pelas escadas abaixo sem dizerem nada. Dizem por aí que são turistas. Acho que foi por causa dessa gente que colocaram ao meu lado um minorca com pouco mais de dois metros de altura, chamam-lhe réplica. A única coisa que ele tem é as paredes redondas e uma pequena roda com velas que anda ali feita maluca quando o vento está de feição. De moinho não tem nada, mesmo nada. Chamar ao minorca um moinho de vento, até dá vontade de rir. Ele não tem portas nem janelas, ele não tem engrenagem, ele não tem Alma nem coração, não sei para que serve!

Quando eu nasci, não havia cimento como hoje. Fui construído com pedras fixadas com barro. Fizeram-me redondinho e tenho a forma de cone com mais de seis metros de altura. Depois das paredes concluídas e bem lá em cima, colocaram-me uma calha em toda a volta chamaram-lhe frechal. A seguir, construíram dois patamares em madeira fazendo de mim um prédio com r/c, 1º e 2º andar. A seguir, e mesmo antes de me fazerem a cabeça, colocaram-me um tronco de carvalho muito grosso e pesado na transversal a partir do centro até bem lá para fora do frechal. Por fim construíram a cúpula em madeira com rodinhas e colocaram-na encima do frechal. Era a minha “cabeça”.

Para que eu a pudesse virar para todos os lados, montaram um esquema de cordas com rodízios, chamaram-lhe o sarilho. Desta maneira., basta o meu tratador puxar os cordelinhos e lá ando eu de cabeça à roda à procura do lado onde sopra o vento. Mas, para que o meu tratador não tenha de sair à rua para ver de que lado sopra o vento, colocaram-me lá bem no alto e já fora da cúpula um cata-vento. Ou seja: uma pequena rodinha com um rabo em leque que se vira para o lado onde sopra o vento.
Essa rodinha está ligada a um eixo que entra na cúpula até a um dispositivo que determina o lado exacto onde sopra o vento: Norte-sul / Este-Oeste.

Como o vento tem muita força, tenho de o aproveitar para pôr o meu dispositivo em movimento. Quando ele muda de posição eu fico parado, então lá vem o meu tratador puxar-me os cordelinhos pondo-me a cabeça à roda até encontrar o ponto cardeal de onde ele sopra. Quando acabaram de construir a cúpula colocaram-me no centro um eixo (A minha coluna) que vai até ao r/c . Em cada ponta montaram uma grande roda dentada. Também na parte mais grossa do tronco transversal, foi montada uma roda com os dentes dispostos na lateral que engrena na roda do eixo central. A roda dentada colocada no eixo central no r/c, faz accionar os rodízios de madeira que estão directamente ligados às mós no primeiro andar.  
Depois montaram as velas. Dado que o tronco sai para fora da cúpula, foram afixadas na ponta quatro varas que se cruzam entre elas.

A seguir ataram oito velas de pano. Quando o vento sopra com força faz rodar a grande roda de velas e o tronco roda à mesma velocidade. Como está engrenado ao eixo central, faz rodar todo o sistema montado no r/c destinado a mover as rodas de pedra existentes no primeiro andar. Ao entrares no moinho, a primeira coisa que vês são os grandes rodízios, uns com os dentes na horizontal e outros na vertical que, encaixados uns nos outros, aguçam a curiosidade de quem me visita. Para moer os cereais até ficarem em farinha, colocaram-me na cúpula, uma caixa de madeira com a forma cónica e chamaram-lhe o Tegão. O fundo dessa caixa está ligado a um tubo que, uma vez cheio de cereais, conduz o grão para um pequeno dispositivo também construído em madeira destinado a controlar a entrada de grão no orifício da mó.

 Este dispositivo está pendurado encima da mó perto do buraco chamado “Olho da Mó”. Nele está pregado um pauzinho que assenta na roda. Com o movimento constante da roda, o pauzinho faz tremer todo o dispositivo que, por sua vez, faz deslizar os grãos devagarinho para dentro do olho da mó. Ali, são totalmente triturados até ficarem em farinha. Dado à rotação da mó, a farinha é expelida para as laterais. Há medida que a farinha se vai amontoando o meu tratador vai ensacando para no final entregar a quem pertence. Este é o meu trabalho que, ajudado pelo vento, nunca me recusei a fazer sem ter direito a dormir, a folgar e mesmo a férias. Aqui estou eu velhinho com pouca saúde a fazer o que posso, mas feliz por saber que vocês gostam de mim e que me admiram muito, por isso, ofereço-vos este poema:

O vento a soprar,
As velas a puxar,
As mós a rodar.
O burro a cavalgar
Os cereais a transportar
Para ao moleiro a entregar.
As mós a transformar
O moleiro a ensacar.
O padeiro a peneirar
A farinha a amassar
O forno a cozinhar
O pãozinho para o teu jantar.

Dezembro de 2012
 A. Sanches                    

4 comentários:

  1. Bom dia
    Nunca visitei nenhum moinho de vento mas sei quanto eles eram importantes na vida das nossas aldeias e cidades.Aqui perto de mim existia um moinho movido com um motor diesel. Tudo acabou e os campos foram pasto para muitas e bonitas vivendas outros foram plantados de árvores.
    Um dia irei passar por aí antes que te transformem também.
    Um abraço e cuida-te bem como a esse velhinho que sempre me olhou com tanta simpatia e carinho

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  2. ⁀‵⁀,) ✫✫✫
    .`⋎´✫✫¸.•°*”˜˜”*°•.✫
    ✫¸.•°*”˜˜”*°•.✫✫
    .•°*”˜˜”*°•.✫✫✫ FELIZ ANO NOVO, ANTÓNIO!
    Que 2013 seja o ano de todas as realizações.

    Beijinho,
    Ana Martins

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  3. Entrei casualmente neste blog que me prendeu de imediato com este retrato escrito a simbolizar alguém que, mostrando um pouco de fragilidade, também mostra e com muita coragem o que lhe vai na alma! Parabéns ao autor e obrigada pela generosidade de mostrar um pouco de si.
    Alda Caseiro

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  4. Não sei nada de si, amigo, há anos. A última pessoa a quem perguntei foi à nossa querida Ana que está muito doente, o que le me disse se si deixou-me aprensiva e triste e agora sou também eu que acabou de descobrir que tenho um coração doente e que pode falhar a qualquer momento.
    Um abraço enorme da sua amiga de sempre e para sempre.

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